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quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Clonazepam: uso irregular do calmante mais vendido no Brasil causa dependência silenciosa entre idosos

Clonazepam lidera o consumo de ansiolíticos no país, com 39 milhões de unidades vendidas em 2024. Médicos alertam que o uso prolongado provoca dependência e perda de memória, e reflete também a solidão do envelhecimento brasileiro.

clonazepam, calmante mais vendido do Brasil, é parte da rotina de milhões de brasileiros — especialmente de idosos. As estimativas apontam que ao menos 2 milhões de pessoas acima de 60 anos fazem uso do medicamento no país.

Só em 2024, foram 39 milhões de caixas comercializadas, segundo dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O uso, que deveria ser restrito a crises agudas de ansiedade ou insônia, se prolonga por anos e, silenciosamente, transforma o alívio em dependência.

Nos consultórios, os relatos se repetem: “Se eu não tomar clonazepam, não durmo.” “Sem ele, fico agitada.” As frases foram ouvidas pelo neurologista Alan Eckeli, especialista em Medicina do Sono e professor da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto. Elas são, quase sempre, ditas por pacientes acima dos 60 anos — e anunciam uma dependência silenciosa.

“Muitos chegam com a receita renovada há anos, sem lembrar quando começaram a usar o remédio”, conta Eckeli. “O efeito é rápido e eficaz, e é exatamente isso que o torna perigoso. O medicamento funciona — mas, equivocadamente, passa a ser tomado sem fim.”

Segundo o médico, a banalização do uso começa ainda na prescrição. “Muitas vezes, quem indica o clonazepam não tem formação em sono ou saúde mental. A insônia é tratada como sintoma, não como doença — e o tratamento se eterniza.”

RESUMO DA REPORTAGEM EM 7 PONTOS

  1. Clonazepam deveria ser usado apenas em crises agudas de ansiedade ou insônia, mas acaba virando rotina.
  2. calmante é usado equivocadamente para preencher vazios emocionais: é tomado para aliviar solidão, luto e dor crônica.
  3. Muitos pacientes pedem a receita e resistem à retirada, mesmo após anos de uso contínuo.
  4. uso prolongado causa problemas: perda de memória, risco de quedas e prejuízo cognitivo.
  5. alta taxa de consumo no Brasil é fruto de uma longa história de prescrição excessiva desde os anos 1990.
  6. O problema está no uso sem acompanhamento: o remédio induz o sono, mas não o sono de qualidade.
  7. desmame é lento e exige acompanhamento médico, com mudanças de rotina e apoio psicológico.

O mais popular entre os benzodiazepínicos

O clonazepam, de nome comercial Rivotril, pertence à classe dos benzodiazepínicos, medicamentos que atuam reforçando o GABA, um neurotransmissor responsável por desacelerar a atividade cerebral.

Ele é indicado oficialmente para o tratamento de epilepsia, transtornos convulsivos, crises de pânico, ansiedade e distúrbios do sono, de acordo com a bula aprovada pela Anvisa.

O efeito calmante aparece rápido — o corpo relaxa, a mente desacelera — e a sensação pode durar até 24 horas, graças à liberação lenta do princípio ativo, que mantém o efeito por mais tempo.

No entanto, seu uso contínuo como ansiolítico diário é incorreto e não recomendado, já que o medicamento foi desenvolvido para tratamentos de curta duração ou situações específicas, sob acompanhamento médico.

Levantamento nacional da Pesquisa sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos (PNAUM), publicado em 2022, mostra que ao menos 2 milhões de idosos brasileiros usam benzodiazepínicos — e 41,3% deles especificamente o clonazepam.

Apesar do alto número de usuários, o clonazepam é um medicamento controlado, de tarja preta, cuja venda só é permitida mediante receita azul, válida por 30 dias e retida pela farmácia a cada compra. A prescrição deve ser feita por médico habilitado, e cada dispensação fica registrada em um sistema nacional monitorado pela Anvisa e pelas vigilâncias estaduais.

Dados mais recentes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) confirmam a liderança. Segundo relatório da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), o Brasil registrou 39 milhões de unidades de clonazepam vendidas em 2024.

O volume supera, por ampla margem, o de outros ansiolíticos do mesmo grupo, como o alprazolam (20,5 milhões de unidades), o bromazepam (15,3 milhões) e o diazepam (7,7 milhões).

Até mesmo as chamadas “drogas Z”, apresentadas como alternativas mais modernas para tratar insônia, ficam para trás: o zolpidem, o mais popular entre elas, registrou 15,9 milhões de unidades vendidas em 2024.

Por que o clonazepam é tão usado

A popularidade do clonazepam tem explicações que misturam ciência e cultura.

O geriatra Pedro Curiati, do Núcleo de Geriatria do Hospital Sírio-Libanês, explica que o medicamento tem meia-vida longa — ou seja, permanece ativo no organismo por até 24 horas após a ingestão.

Esse efeito prolongado é o que garante uma noite de sono mais contínua e uma sensação duradoura de calma, mas também faz com que a substância se acumule no corpo.

“No idoso, cujo metabolismo é mais lento, esse acúmulo aumenta o risco de confusão mental, quedas e dependência”, afirma.

Mas a força do clonazepam não se deve apenas à sua ação farmacológica. De baixo custo — menos de R$ 6 por caixa — e de fácil acesso, inclusive no Sistema Único de Saúde (SUS), o medicamento ultrapassou o campo médico e entrou no cotidiano popular.

A divulgação intensa nos primeiros anos de venda ajudou a fixar o nome do produto no imaginário coletivo.

“A força do marketing fez com que todo mundo conhecesse o nome Rivotril, mesmo sem precisar do remédio”, explica Eckeli.

Dependência física, emocional e social

A psiquiatra Simone Kassouf, responsável técnica pela rede de psiquiatria Somente, calcula que entre 20% e 25% das pessoas que atende já chegam usando o medicamento, a maioria com mais de 45 anos.

“É muito comum recebermos idosos que tomam benzodiazepínicos há anos, sem qualquer revisão da prescrição. A medicação gera conforto sintomático, mas não resolve o problema de fundo”, afirma.

O efeito rápido, que traz alívio imediato, é também o que alimenta o uso contínuo. Segundo Kassouf, remédios dessa classe deveriam ser indicados apenas em crises agudas de ansiedade ou insônia, mas acabaram sendo incorporados à rotina.

Essa adaptação, explica a psiquiatra Camilla Pinna, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vai muito além do corpo. “Com o uso regular, o cérebro aprende a relaxar apenas na presença do remédio. Quando tenta parar, a ansiedade e a insônia voltam mais intensamente — é o chamado efeito rebote.”

Ela observa que, para muitos idosos, o calmante também preenche vazios emocionais. “O corpo se acostuma, mas o medo de ficar sem o medicamento reforça o vício. Muitos tomam o remédio não só para dormir, mas para lidar com a solidão, o luto, a dor crônica. É um uso que vai muito além do biológico.”

Esse vínculo emocional, segundo o psiquiatra Paulo Rogério Aguiar, da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), torna o desmame ainda mais difícil.

“Há uma demanda enorme. Muitos pacientes pedem a receita e resistem à retirada. O efeito imediato agrada, mas o uso prolongado cobra um preço alto — perda de memória, risco de quedas, prejuízo cognitivo. Nosso papel é explicar e substituir por alternativas mais seguras.”

Uma geração que envelheceu com o calmante

Para Tales Cordeiro, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP e da Clínica Sartor, a alta taxa de uso é fruto de uma longa história.

“Muitos começaram a tomar na década de 1990, quando essas drogas eram amplamente prescritas e vistas como solução rápida. Hoje, aos 70 ou 80 anos, seguem tomando. O remédio virou parte da identidade deles.”

Coordenador do Departamento de Medicina do Sono da Associação Brasileira de Psiquiatria, Almir Tavares acrescenta que o envelhecimento brasileiro ocorre em meio a doenças crônicas e desinformação.

“O Brasil envelhece rápido, mas é um envelhecimento cheio de limitações. O clonazepam é um bom ansiolítico, uma ferramenta importante, mas o problema está no uso sem acompanhamento. Ele induz o sono, mas não o sono de qualidade: impede o acesso às fases profundas, como o sono REM, e o corpo não se recupera de verdade”, explica.

Clonazepam: uso irregular do calmante mais vendido no Brasil causa dependência silenciosa entre idosos
— Foto: Freepik

Desmame é lento e exige acompanhamento

Entre os especialistas, há consenso: parar exige tempo, cuidado e supervisão.

“Se houver uso crônico, nunca deve ser suspenso de forma abrupta”, reforça Pinna. “O desmame precisa ser lento, com acompanhamento médico e foco em tratar a causa — não apenas o sintoma.”

A terapia cognitivo-comportamental (TCC) é considerada o tratamento de primeira linha para insônia e ansiedade, mas ainda é pouco acessível no sistema público.

Curiati acrescenta que pequenas mudanças podem ter impacto real: “Atividade física, exposição à luz natural, horários regulares para dormir, evitar telas e café à noite — são estratégias simples que funcionam.”

O retrato de um envelhecimento ansioso

A história dos calmantes é também a história de uma busca que se repete: a de um sono tranquilo sem consequências.

  • Nas décadas de 1950 e 1960, os barbitúricos dominavam o mercado — potentes, mas perigosos. Bastava uma superdosagem para causar intoxicação grave.
  • Na tentativa de reduzir riscos, surgiram então os benzodiazepínicos, como o diazepam e, mais tarde, o clonazepam, considerados uma revolução por oferecerem o mesmo efeito calmante com menor chance de overdose.

O tempo mostrou, porém, que a troca não era tão simples. “Esses medicamentos trouxeram segurança clínica, mas abriram espaço para outro tipo de dependência — a do uso crônico”, resume Alan Eckeli, da USP de Ribeirão Preto.

  • Nos anos 2000, vieram as chamadas “drogas Z”, como o zolpidem, divulgadas como alternativas modernas e de ação mais específica para o sono. Por algum tempo, acreditou-se que elas trariam menos riscos. Hoje, os estudos mostram que o potencial de abuso e de efeitos colaterais é semelhante.
  • Agora, novas gerações de compostos — como a ramelteona e os antagonistas da orexina — prometem induzir o sono de forma mais fisiológica, sem vício. Mas, como lembra Eckeli, ainda são pouco acessíveis e muito caros, o que mantém a população dependente dos medicamentos antigos.

O uso prolongado, dizem os especialistas, é reflexo de um envelhecimento ansioso e solitário.

“Muitos idosos acabam recorrendo ao calmante não apenas por insônia ou ansiedade, mas por solidão, luto ou falta de apoio familiar”, afirma Camilla Pinna, psiquiatra da UFRJ. “Esses fatores emocionais pesam muito e precisam ser acolhidos — conversas, vínculos e atividades podem fazer tanta diferença quanto o remédio.”

O geriatra Pedro Curiati, do Hospital Sírio-Libanês, acrescenta que esse quadro de tristeza e retraimento muitas vezes é confundido com ansiedade, o que leva à prescrição inadequada de calmantes. Ele explica que a depressão é comum nessa fase da vida e tem múltiplas causas — desde a perda de vínculos até as limitações trazidas por doenças crônicas.

“O tratamento adequado, além do diagnóstico médico, deve ser feito com antidepressivos — que não causam dependência — e, sempre que possível, com terapia cognitivo-comportamental e psicoterapia.”

Fonte Talyta Vespa/g1

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